Artigo do activista LGBT Sérgio Vitorino, no jornal Público, hoje:
O Milk derramado ou o casamento de segunda do PS
Quando o primeiro-ministro anunciou que o Partido Socialista (PS) proporia nesta legislatura o alargamento do acesso ao casamento civil a casais do mesmo sexo, citou o filme Milk, sobre a vida de um activista histórico. Mas não terá entendido uma frase que diz muito sobre o legado de Harvey Milk: ‘Tragam-me activistas, não políticos’.
À beira de nova votação parlamentar sobre o tema, com o PS agora a favor, a frustração deste desabafo podia ser a de muitos/as activistas do movimento LGBT (Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero) português, em contraste com a posição da associação ILGA Portugal e do primeiro deputado gay assumido, Miguel Vale de Almeida (MVA).
Nos últimos cinco anos, este sector – minoritário no movimento mas com grande visibilidade mediática – tem defendido uma estratégia de afunilamento do conjunto da agenda LGBT à reivindicação do casamento, apresentado como absolutamente prioritário, isoladamente da restante agenda e mesmo do conjunto dos ‘direitos familiares’. Esta ideia foi repetidamente refutada pela esmagadora maioria do movimento associativo, sem prejuízo de todo ele defender activamente a alteração legal. É duvidoso isolar ‘bandeiras’ de forma asséptica num país que, ao contrário de outros que alargaram o casamento, ainda não encara os problemas mais urgentes da discriminação, nem reconhece realmente a homofobia ou a transfobia como problemas sociais, como está claro na inexistência de medidas preventivas face a casos como o assassinato da transexual Gisberta, em 2006. De choque e espanto está o inferno cheio: na ausência do combate à discriminação, os problemas de base permanecem.
O quanto vai custar ao movimento nos próximos anos a imposição de um foco exclusivo no casamento, está claro na já certa exclusão da adopção por casais do mesmo sexo. O PS argumenta esta opção cobarde com a resistência criada pela mobilização em defesa de um referendo - fraca justificação, à luz dos sectores ultra-minoritários que a têm promovido.
Ao atribuir direitos com uma mão e, com a outra, legislar contra eles, o governo fará de Portugal o único país no mundo “com casamento” mas “sem adopção”; criará uma bizarria legal pela qual gays e lésbicas, casados/as ou não, podem adoptar crianças, mas não como casal; permitir-lhes-á casar, mas deixando no limbo legal a relação entre os filhos existentes ou eventuais e um dos seus pais. A obsessão geral com o tema ‘adopção’ oculta que o conjunto de direitos que está realmente em causa é tudo o que respeita a reprodução e parentalidade, como acesso legal à inseminação artificial por mulheres solteiras não inférteis, ou o reconhecimento de co-parentalidade para os muitos casais de gays e lésbicas com filhos, que naturalmente não esperam aprovação social e legal para os terem. Gays e lésbicas sempre foram pais e mães nas relações heterossexuais com que se defendiam, ocultando a sua verdadeira orientação sexual. Hoje, estamos apenas a fazê-los em liberdade.
É claro que ‘casamento’ não implica ‘reprodução’. Mas, negar a possibilidade de existência de crianças, e o interesse superior dessas crianças, não é um reconhecimento real das várias formas de família. Nem uma nem outra perspectiva parecem estar a impedir o executivo de ponderar unir num só projecto-lei os temas ‘casamento’ e ‘adopção’, forçando a restante esquerda parlamentar – mesmo a favorável à adopção por casais do mesmo sexo - a votar favoravelmente a discriminação na adopção se não quiser impedir o alargamento do casamento. O PS evitaria assim assumir sozinho à esquerda a introdução explícita de uma nova discriminação em função da orientação sexual em Lei do século XXI, a primeira desde que a Constituição a previne. Mas, ao colocar o conjunto do Parlamento a dizer ao país, em uníssono, que “podemos casar, mas não se nos pode confiar uma criança”, qualquer citação de Zapatero sobre “uma sociedade que não humilha os seus membros” fica mal na boca do primeiro-ministro: não concebo maior humilhação. É esta a “legitimação social” que o casamento trará às famílias de gays e de lésbicas, a discriminação onde o preconceito é mais danoso e mais se tenta deslegitimá-las: reprodução e parentalidade?
A proposta do PSD de uma união civil é a de um “casamento de terceira". “De segunda”, é o que o Parlamento se prepara para aprovar. E a responsabilidade do PS não dilui a do sector do movimento que há muito lhe diz que a "igualdade pela metade" seria aceitável.
Em entrevistas recentes, MVA defende o separar de legislações e diz esperar que o tema ‘adopção’ possa resolver-se na actual legislatura. Porém, o deputado sabe que a “esperança” carece de fundamento, desde logo porque as contradições internas do PS que impõem esta via parcial não têm solução à vista. E sabe que contribuiu para o oposto: ao tentar convencer as restantes opiniões a calarem o tema da adopção, MVA chegou a brandir, em reunião associativa pouco antes de ser candidato, “garantias pessoais” de José Sócrates de que esta seria simultaneamente viabilizada “pela surra”. Além de já então não ser credível - ou desejável - que assim fosse, o silenciar dos temas parentais abandonou-os, sem resposta adequada, à argumentação terrorista do temor de “entregar crianças a homossexuais”, e vai adiá-los sine die e por muitos mais anos do que permitiria uma abordagem de conjunto aos direitos familiares.
É muito pouco, mesmo para uma “política do possível”. Não questiono o valor da eleição de um gay assumido com intervenção pública de longa data em favor da causa. Mas questiono o acordo geral do movimento LGBT com a sua estratégia minoritária.
Valorizo que o primeiro-ministro exprima vergonha pública pela forma com têm sido tratadas “as pessoas homossexuais”, e sei que MVA fez parte dessa ‘abertura de espaço’. Mas a votação parlamentar que se aproxima vai confirmar que pouco mudou na forma como nos trata o poder político: a igualdade não estará na ordem do dia.
Sérgio Vitorino [retirado daqui]
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