Teria ficado a falar sozinho quem nos anos 60, 70 e 80 se tivesse lembrado de propor o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A ideia seria entendida como inaceitável. À época, gays e lésbicas tinham como valores fundamentais a liberdade e a autodeterminação. Não lhes passaria pela cabeça copiar os heterossexuais na sua maneira de viver a conjugalidade. “Queers didn’t allways salivate at the sound of a wedding bell, I know because I was there”, diz Ferd Eggan, activista gay americano, em That’s Revolting! (2004), livro contra ao casamento gay (capa ao alto).
Um resumo muito resumido. O movimento gay moderno nasce dos movimentos sociais dos anos 60, principalmente o feminismo, e é forjado nesse acontecimento central da afirmação gay nos EUA que é a Revolta de Stonewall, a 28 de Junho de 1969, quando um grupo de travestis, homossexuais, prostitutos e desalinhados, desafiando uma rusga policial homofóbica, se amotinou no interior da discoteca Stonewall Inn, em Cristhopher Street (Greenwich Village, Nova Iorque). É um movimento anti-establishment, anti-patriarcal, anti-heterossexista. Um movimento de contra-cultura, de afirmação da identidade homossexual (mais a masculina que a feminina, numa primeira fase), pleno de excessos e provocações, e, principalmente, fundador da ainda hoje celebrada noção de orgulho gay, entretanto transformada, e bem, em orgulho LGBT.
Estamos hoje numa fase de cisão dentro do movimento gay. Entre os que reclamam um estatuto de normalidade e o fazem depender da legalização do casamento gay. E os que defendem uma via original (relacional, cultural, política) para gays e lésbicas e por isso se opõem ao casamento gay.
Até à era da sida, o movimento gay sempre rejeitou a ideia de casamento, por entender que ele era o lugar do poder machista, patriarcal e heterossexista, que oprimia em função do género (mulheres) e da orientação sexual (homossexuais).
O movimento gay português, ao colocar o tema do casamento homossexual na agenda pública, fez por esquecer que algum dia os homossexuais tinham rejeitado o casamento. Pior: tentou condicionar a forma como os homossexuais são vistos pela sociedade. Chega-se a dizer que a não aprovação do casamento gay é uma forma de ilegalizar simbolicamente a homossexualidade, o que não passa de um disparate, porque a Constituição portuguesa proíbe a discriminação em função da orientação sexual (o que foi conseguido mais por pressão das políticas europeias do que por acção do activismo gay português).
Em auxílio desta manipulação, tem havido um esforço concertado no sentido de tornar socialmente invisível a dimensão sexual (as práticas sexuais) dos homossexuais. Os defensores do casamento gay julgam ser importante, para favorecer uma visão positiva dos gays junto da opinião pública, apresentá-los como pessoas desejosas de pertencer à normalidade matrimonial. Nisso, a sexualidade genital, digamos assim, tem sido sacrificada em favor daquilo a que se pode chamar uma dimensão meramente romântica, mas forçada, da homossexualidade. Como se os homossexuais masculinos fossem castrados e as lésbicas assexuadas. Como se dessa forma a homofobia acabasse.
Não por acaso, nas reuniões de preparação das Marchas do Orgulho LGBT 2009 de Lisboa e Porto, a ILGA Portugal e a Rede Ex Aequo entraram em confronto aberto com sectores do activismo gay português que pretendiam chamar a atenção, durante as marchas, para o tema do poliamor, isto é, uma forma de viver relações poligâmicas.
[ADENDA: O apagamento da dimensão sexual de gays e lésbicas tem o óbvio objectivo de não deixar que se discuta as questões da fidelidade e da poligamia, que são, por natureza ou construção, um dos elementos que distinguem a conjugalidade gay da "hetero".]
O antropólgo Mark Graham, num artigo de Setembro de 2004, sintetiza: “The solution to homophobia is not (…) to hide same-sex sexuality behind talk of love and commitment in the context of marriage. (...) Homophobia does not result from the presence or absence of gay marriage, or from any other single status or characteristic, and therefore it cannot be eliminated by altering it”.
Conclui o antropólogo:
[citações do artigo “Gay Marriage: Whither Sex? Some Thoughts From Europe”, de Mark Graham, Journal of NSRC(San Francisco State University), Setembro 2004 Vol. 1, No. 324]“By not mentioning sex, the central plank of homophobia, fear and hatred of queer sexuality remains unaddressed. In fact, this absence leaves the cultural basis for homophobia largely intact. Debates surrounding gay marriage have focused attention on relationships and commitment, which in itself is certainly laudable given how “gay” and “commitment” have often been seen as antithetical terms, but through this approach they do not challenge the underlying foundations of homophobia as much as many proponents of gay marriage seem to assume. (...) I would like to see more discussion of sex in marriage, not because respect for gay relationships, economic inequalities, and sexual rights is unimportant, but because to avoid sexuality is to side-step the erotophobia that has characterized much of the public discussion of gay marriage.”
A defesa do casamento seria uma "normalização" da homossexualidade de acordo com os parâmentros heterossexuais, e você desejava o reconhecimento da dimensão sexual (práticas sexuais) dos homossexuais? É isso? Olhe que em Espanha, onde existe o casamento, o lado sexual é bem visível. Basta ir a Sevilha, Madrid ou Barcelona. Como aliás no Canadá, nos Países-Baixos, no Reino Unido, etc., todos países onde existe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Já nos EUA, apesar de todos os activismos herdados dos anos 70, a sociedade está cada vez mais puritana. A sua dicotomia é falaciosa, não é a existência ou não do casamento que condiciona a vivência sexual dos homossexuais, é a permissividade/repressividade da sociedade em que vivem, e sobretudo o grau de culpabilização que sentem os próprios homossexuais. O principal inimigo dos homossexuais em Portugal não são os que advogam o acesso ao Casamento Civil, mas sim as doutrinas da Igreja Católica. É claro que o casamento não significará o fim da homofobia. Mas se esta lei for chumbada, ou pior, se houver referendo, o que realmente estará em causa será a legitimidade da homossexualidade. Nesta situação, não podemos ser contra!!! Ou você julga que depois de um chumbo não haverá um aumento da homofobia e da repressão da homossexualidade em Portugal? E talvez não, precisamente, nos locais onde os homossexuais vivem como heteros (bares e discotecas, Bairro Alto, locais "mistos"), mas precisamente nos locais onde, pelo contrário os gays vivem a sua sexualidade de forma escondida (locais de engate etc.)! Sejamos lúcidos! Se você deseja tornar socialmente visível a dimensão sexual dos homossexuais, e presumo que não esteja a falar de sexo em público, mas de manifestações públicas de afecto, ou da visibilidade dos locais especializados, acha sinceramente que contribuir para negar o casamento é um passo nesse sentido?
ResponderEliminarJorge: a isso responde o antropólogo citado: "A homofobia não resulta da existência ou não do casamento gay e por isso não pode ser eliminada com a introdução do casamento gay."
ResponderEliminarE pode, tornando "socialmente visível a dimensão sexual (as práticas sexuais) dos homossexuais"? Num país dominado pela Igreja? Acha, realmente?
ResponderEliminarNão digo no 'post' que a homofobia acaba através da visibilidade pública das práticas sexuais gay. Digo que por causa da defesa do casamento gay se tem tentado obliterar a dimensão sexual de gays e lésbicas.
ResponderEliminarComo diria o Ary dos Santos, "Serei tudo o que quiserem/ Poeta castrado, não!".