9 de novembro de 2009

A assimilação

Ouve-se isto com frequência: o casamento gay tem de ser legalizado e como só se casa quem quer não faz sentido contestá-lo. Outro argumento semelhante: mesmo os homossexuais que reconheçam que o casamento sempre foi uma instituição machista e heterossexista, podem ter uma vontade genuína de casar e não devem ser impedidos de o fazer.


Estes dois argumentos foram resumidos pelo dirigente do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, desta forma: o que está em causa “não é se gostamos ou não das escolhas dos outros, mas muito simplesmente se temos a dignidade de respeitar as escolhas dos outros" (em 15/10/2009).


Ora, que os homossexuais têm que ter os mesmos direitos de que beneficiam, hoje e de futuro, os casais heterossexuais casados, ninguém duvida. Que isso deva acontecer através do casamento, eis o erro. Que os gays e as lésbicas só possam ver as suas relações reconhecidas pelo Estado (se for isso que desejam, porque há quem nem isso queira) através de um modelo conjugal chamado casamento é uma cedência inaceitável às regras que a sociedade heterossexista criou e através das quais sempre excluiu os gays e as lésbicas.


Pergunta-se: e todas as outras formas de família que existem independentemente da orientação sexual, número de envolvidos, sexo, grau de parentesco, estado civil, casa de morada de família: não têm validade?


Não deveriam os defensores do casamento gay estar antes preocupados em por fim ao casamento, ele próprio, e, por isso, em rejeitar a reprodução de um modelo de conjugalidade de matriz heterossexual?


Por que querem os homossexuais integrar um modelo de conjugalidade que está em profunda decadência? O número de divórcios em Portugal é cada vez maior e a taxa bruta de nupcialidade tem vindo a baixar de forma sustentada desde o fim dos anos 70, como atestam os dados do livro A População Portuguesa no Século XX (2003), da demógrafa Maria João Valente Rosa e da socióloga Cláudia Viera (p.69).


As conclusões das autoras não podiam ser mais claras: “O mecanismo mais frequente de dissolução do casamento deixou de ser a viuvez” e “o casamento, no seu modelo inicial, perdeu a preponderância que teve outrora na constituição de uma nova família”.


O casamento gay representa a destruição da autodeterminação que gays e lésbicas conseguiram criar ao longo de décadas (esta é a perspectiva que a Teoria Queer e o chamado feminismo radical hoje defendem).


Leia-se a opinião da filósofa americana Camille Paglia, publicada em 1997:


Napoleon began the process of detaching marriage from religion when he created civil marriages in France. We Americans should complete that process by stripping from government every vestige of its implicit endorsement of Judeo-Christian concepts and forms.

My position is extreme. I see no justification for the government's banning of polygamy either — a practice of the Hebrew patriarchs found in many world cultures. The Mormons tried to revive polygamy in the 19th century, until they were unjustly persecuted by the government.

None of the official gay spokesmen has been able to deal with the issues of polygamy and incest that conservative opponents of gay marriage keep raising. As usual, we need less p.c. ideology and more historical research and searching self-analysis.

O casamento gay é o culminar de um processo de assimilação, prejudicial para gays e lésbicas, que a activista americana Mattilda Bernstein Sycamore denuncia desta forma no livro That’s Revolting (2008):

“The tyranny of assimilation lies in the way the borders are policed. For decades, there has been strife within queer politics and cultures, between assimilationists and liberationists, conservatives and radicals. Never before, however, has the assimilationist/conservative side held such a stranglehold over popular representations of what it means to be queer. Gay marriage advocates brush aside generations of queer efforts to create new ways of loving, lusting for, and caring for one another, in favour of a 1950s model of white-picked-fence, ‘we’re-just-like-you’ normalcy.”

4 comentários:

  1. Meia dúzia de linhas para:
    - dar-te os parabéns pela iniciativa do blog;
    - deitar achas para a fogueira.

    Concordo:
    - que é abusivo afirmar que todos os homossexuais reclamam o direito a casar (sou homossexual e sou contra o casamento de pessoas do mesmo sexo);
    - que é abusivo afirmar que a discussão deve conter-se no plano meramente jurídico (porque todo o jurídico assenta sobre uma realidade antropológica e sociológica).

    Ainda assim gostaria de referir que:
    - do ponto de vista jurídico, mais do que estender o "falido" instituto jurídico do casamento à união entre pessoas do mesmo sexo, seria importante, isso sim, permitir a extensão de certos efeitos do casamento, por via contratual, às uniões de facto;
    - agendar para o princípio desta legislatura o debate sobre uma questão como esta só pode ter um objectivo político - o de desviar as atenções mediáticas. E isso parece-me dever ser combatido. Por homossexuais e não só.

    ResponderEliminar
  2. Alhos e bugalhos. Primeiro, o alargamento do casamento civil às pessoas do mesmo sexo não implica a obrigação de casar. Os gays que quiserem continuar a viver a sua homossexualidade de forma "marginal" poderão continuar a fazê-lo, tal como fazem muitos "heteros". Em segundo lugar, não substituamos um totalitarismo "hetero" por um totalitarismo "gay"- cada um deve poder fazer o que lhe aprouver. O que está em questão é a possibilidade de escolha. Finalmente, é absurdo interpretar o acesso ao casamento como uma alteração do regime do casamento civil, quer através das visões apocalípticas dos heteros que receiam o fim daquilo a que chamam "família", quer através das visões libertárias dos que reclamam a introdução da poligamia ou do incesto: ambas posições extremistas, ridículas, e contraproducentes...

    ResponderEliminar
  3. Jorge: que o casamento gay, uma vez legalizado, não obriga ninguém a casar, é óbvio. Por isso é argumento fraco. O que se diz neste 'post' é que os defensores do casamento gay deveriam estar interessados num modelo de conjugalidade que sirva os interesses dos homossexuais e não num modelo que está caduco e foi criado para regular a realidade heterossexual.

    Em nenhuma parte deste blogue vai encontrar essas visões apocalípticas que acham que o casamento gay vai destruir a família tradicional (o que quer que ela seja). Essa é a argumentação católica ou a da direita conservadora.

    Quanto à oficialização da poligamia, como diz Camille Paglia, é um tema com o qual os defensores do casamento gay não conseguem lidar, mas é tão importante e discutível quanto outro tema qualquer.

    ResponderEliminar
  4. não conseguem ou simplesmente não é essa a luta? Se achas uma luta meritória, arranja meia dúzia de seguidores e força, comecem o movimento. Agora, não obrigues os outros a lutar por ti, quando o que desejam é bem simples: que qualquer cidadão maior se possa casar com qualquer outro cidadão nas mesmas circunstâncias.
    De resto, trazer a poligamia, a bestialidade, o apocalipse em geral e o inferno das criancinhas em particular são todos argumentos do mesmo tipo: distração, tentativa de manipulação das fobias das pessoas, desconversar.
    E parece-me que escolhes não publicar os comentários que te desconcertam, que democrático, não?

    ResponderEliminar